(14/11/2008)
Cada vez mais conhecidas pela opinião pública, as ameaças à Amazônia permanecem, porém, imersas na bruma dos fatos lamentáveis, contra os quais as sociedades julgam-se impotentes. Sabe-se que as queimadas e a extração predatória de madeira avançam; que a criação de gado e culturas como a soja pressionam a floresta; que a falta de alternativas econômicas empurra parte da população para atividades destrutivas; que em determinadas áreas, como o sul do Pará, o Estado é quase impotente contra o poder econômico associado ao crime. E no entanto, a grande maioria dos que se sentem ultrajados não vê meios para agir. Faltam projetos, objetivos, indicadores: caminhos.Se a intenção é ir além do protesto, tem enorme importância a proposta que o economista Ignacy Sachs. Consultor especial da conferência Rio-92, considerado um dos criadores do conceito de desenvolvimento sustentável (ou eco-sociodesenvolvimento), Sachs fez conferência a convite de um conjunto de organizações da sociedade civil e de publicações alternativas (entre as quais Le Monde Diplomatique Brasil orgulha-se de figurar). Ele lançou, aos que estudam ou se interessam pelos ecossistemas amazônicos, pelo menos três considerações provocadoras. O documento-base que as expõe está disponibilizado no final deste texto.
Neste paper, o economista sustenta, primeiro, que para preservar a mata e seus biomas é preciso tocá-los. As abordagens que vêem a Amazônia como um território idílico, a ser protegido da ação humana, são, segundo ele, impotentes. Elas não levam em conta a existência de quase 25 milhões de habitantes, a maioria dos quais submetidos a condições de vida precárias. Enquanto não se oferecer alternativas sustentáveis a tal população, ela será atraída por ocupações como a extração predatória de madeiras ou minérios, a pecuária extensiva, os cultivos invasores e a indústria poluente.
Estamos, então, condenados a ser testemunhas de uma enorme tragédia? Não, responde Sachs. Para ele, a Amazônia, vista hoje como a última vítima da era do petróleo, pode ser, alternativamente, a primeira manifestação das biocivilizações contemporâneas. A crise ambiental que está produzindo o aquecimento do planeta, acredita o economista, abre espaço para o fechamento de um período historicamente determinado. A biomassa foi, durante quase dez mil anos, a energia que impulsionou a ação civilizatória do homo sapiens. Há duzentos anos, o uso dos combustíveis fósseis (carvão, petróleo, gás) permitiu um grande salto – cujas conseqüências, contudo, estão se tornando devastadoras. Descobertas tecnológicas recentes permitem vislumbrar uma nova era de bioenergias: sol, vento, combustíveis vegetais. Nenhuma região oferece condições tão favoráveis para servir de laboratório desta nova era quanto a grande floresta sul-americana – onde água, insolação e terra são abundantes.
Embora doloroso, o colapso econômico e ambiental das lógicas de mercado pode estimular as sociedades, pensa Sachs, a reivindicar o direito de construir conscientemente seu futuro
Embora doloroso, o colapso econômico e ambiental desta lógica estimulará as sociedades, pensa Sachs, a reivindicar o direito – e assumir a responsabilidade – de construir conscientemente seu futuro. Isso significa estabelecer políticas que orientem e balizem a ação dos indivíduos e empresas. A criação extensiva de gado, que é altamente lucrativa – e por isso transformou-se em ponta-de-lança do desmatamento – pode ser desestimulada por meio de impostos dissuasórios. Em contrapartida, estímulos fiscais e de crédito adequados podem impulsionar a produção familiar ou cooperativada de alimentos e/ou biocombustíveis.
Sachs debruçou-se, nos últimos seis meses, num estudo exaustivo da realidade amazônica e dos mecanismos capazes de frear a devastação. O resultado do trabalho – que começou em seu gabinete, no Centro de Estudos sobre Brasil Contemporâneo, da École de Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris, e terminou numa propriedade rural da Bretanha – é um paper de dezesseis páginas, intitulado Amazônia: laboratório das biocivilizações do futuro.
Denso e pontilhado de citações, mas de leitura sempre fluida e instigante, o documento reflete um pesquisador que, aos 81 anos, parece cada vez mais profundo e erudito – além de ter reforçado sua visão de ciência como meio de conhecer e transformar o mundo. Sachs desdobra a idéia de biocivilização em dois eixos de ação. Ele quer assegurar, o mais rapidamente possível, a garantia do desmantamento zero – uma proposta formulada por ambientalistas e movimentos sociais. Mas em seu texto, esta consigna não aparece como palavra-de-ordem retórica, e sim como objetivo a ser concretamente conquistado. Para fazê-lo, o economista sugere a conversão paper, oferecer ocupações sustentáveis e vida digna ao dobro de sua população atual das áreas devastadas. Embora representem apenas cerca de 20% da floresta original, elas equivalem a uma França e meia, perfazendo 750 mil quilômetros quadrados. Esta área, que hoje funciona como plataforma para ampliar o desmatamento, poderia, segundo o paper, oferecer ocupações sustentáveis e vida digna ao dobro de sua população atual.
O documento foge do padrão acadêmico tradicional e dá destaque aos estudos e pontos de vista produzidos pelos movimentos sociais e organizações da sociedade civil
Amazônia - laboratório das biocivilizações do futuro
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